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Memória, afeto e objetos

  • Gabriela Gibim
  • 10 de ago. de 2017
  • 3 min de leitura

Qual força os objetos têm sobre nosso “estado de espírito” ou que tipos de relação nós estabelecemos com o mundo mediados pelos objetos do cotidiano? Dos utilizados nos momentos de trabalho, aos de lazer ou ainda, àqueles usados nos cuidados de si. Em todos, em cada objeto criado pela humanidade, está contido uma longa história de sua produção¹. E se formos além, podemos pensar que em cada objetivação humana, ou seja, no ato que realizamos, há uma riqueza que está ali acumulada, vindas desde as gerações passadas. O nosso modo de fazer algo e os objetos que utilizamos estão cheios de história!

Isso, de olhar e pensar sobre os objetos, me vem há algum tempo e se intensificou depois de ter ouvido o relato de alguém, por mim, querido. Em uma ação da polícia na república em que morava, essa pessoa pediu aos policias que não tocassem em seus livros, na estante. Na ação, que resultou em uma casa completamente pelo avesso, com gavetas lançadas ao chão, guarda-roupas, camas e armários revirados, folhas e documentos jogados, essa pessoa me contou que os livros ficaram ali, intocados. Contou-me dos livros intocados e do ritual que mantinha até antes da ação, de, apesar dos descuidos com a limpeza e organização típicos das repúblicas estudantis, colocar os livros organizados junto a outros pequenos objetos também carregados de memórias afetivas: pequenos presentes e achados como pedrinhas, penas, linhas e gravetos retorcidos, que juntos, guardavam singela beleza.

Depois, já com essa história no vai-e-vem da memória, deparei-me com dois textos que relacionavam assim memória, afetos e objetos. O primeiro, “O tempo vivo da memória”² de Ecléa Bosi, em que ela diz da tentativa de criarmos através da disposição dos objetos ao nosso redor, um mundo acolhedor entre as paredes que nos isola do mundo externo, como ela o classifica “alienado e hostil”. Segundo ela, esse conjunto de objetos bibliográficos, “nos dão um assentimento à nossa disposição no mundo, à nossa identidade”. Para aquela pessoa querida de quem eu dizia, aquele pequeno amontoado de objetos era sua expressão. Aos policiais, naquele ato de pedir para que tivessem cuidado com os livros, talvez estivesse lhes dizendo quem ele era.

Diz ainda Ecléa que os objetos bibliográficos são as coisas que envelhecem conosco e que nesse sentido, nos dão a sensação de continuidade, e que o tempo acresce seu valor. De pensar nessa relação com os objetos bibliográficos, revisitei minha infância – quais objetos ainda guardo? – revisitei a casa de minha avó e seus santos alinhados na penteadeira do quarto há não sei quantos anos. E assim fui... até o texto seguinte.


A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência.”.


Assim está em “O espelho”³ de Machado de Assis, o outro texto que mais que rapidamente me lançou, mais uma vez, para a conversa sobre os objetos. Nele, o personagem dizia sobre o homem ter duas almas, uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro. Ainda, sobre a natureza mudável dessa alma exterior (“Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau”) e sobre o relacionamento profundo entre esta e aquela. Se é verdade que nos ligamos intimamente a coisas que estão exteriores ao nosso corpo, é verdade também que essas coisas refletem, para nós e para os outros que as veem, parte importante de nós, nos fazendo visíveis.

Criamos os objetos para que de algum modo eles conduzam nossas ações, o que faz com que tenhamos nos objetos não só um produto, mas também uma fonte de mudanças na vida e no discurso – e desse modo, temos eles como transformadores do nosso modo de pensar. Porque as vezes essas delicadezas da vida passam despercebidas frente à correria cotidiana, fica por fim, o convite a (re)visitar essas narrativas, contidas nesses objetos, que nos desloca, e nos traz antigas-novas formas de olhar o mundo e sentir o tempo. Uma passagem de olhos, que seja, pelos cômodo em que se está ou um abrir de gavetas, caixas, baús... um fitar-se de frente para o espelho.

 

¹Martins, L. M. ; Eidt. N. M. (2010). Trabalho e atividade: categorias de análise na psicologia histórico-cultural do desenvolvimento. Psicol. estud. vol.15 no.4 Maringá

²Bosi, Ecléa. (2003). O Tempo Vivo da Memória: Ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê Editorial ³Assis, Machado de.(1994). Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar.

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